Por João Ibaixe Jr. – Advogado
O caso da jovem influencer Mariana Ferrer gerou grande repercussão por conta do absurdo da tese divulgada como fundamento para absolver o acusado: ‘estupro culposo’. A decisão aconteceu num processo da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, em Santa Catarina, onde a jovem figurava como vítima, a partir de uma acusação contra o empresário André de Camargo Aranha.
Segundo a própria denúncia, ela teria sido dopada e levada a um lugar desconhecido dentro do Café de La Musique, um clube de luxo de Florianópolis, que a havia contratado como embaixadora naquela noite. No local, fora violada sexualmente pelo empresário, que alegou que ela o provocara e que consentira com o ato.
No último dia 9 de setembro, o acusado foi absolvido porque, de acordo com o próprio promotor de justiça, o acusado não teria como saber que a jovem se opunha, se contrariava ou se negava ao ato, porque não houve como provar que ela estaria bêbada. Por esta lógica, como não havia condições do acusado saber que a vítima não consentia com a relação, a figura do estupro não apresentava elemento volitivo, quer dizer, o acusado não teria ‘vontade’ de estuprar. Portanto, sem vontade, o crime seria ‘culposo’, logo, cabendo absolvição. A tese da ausência de prova para demonstrar a embriaguez e o estado de incapacidade da vítima foi aceita pelo juiz.
A par do escândalo que foi a audiência, amplamente divulgada em vídeo nas redes sociais, e muito além da questão do machismo envolvido como pano de fundo, há uma terrível erosão no espaço jurídico, que denota o atual desprezo com o direito penal pátrio.
Com efeito, para o leitor compreender melhor – sem uma preocupação com muita precisão teórica – todo crime configura-se a partir de elementos de composição, chamados de ‘elementares do crime’. Basicamente, são três: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
A tipicidade é o elemento de maior destaque e a culpabilidade, hoje, um dos mais problemáticos. A vontade para a prática de um delito reside, como elementar, na tipicidade. Uma conduta, ação ou omissão, é típica quando o agente não só executa o ato (ou deixa de executá-lo), mas quando também tem vontade de realizar o ato em toda sua configuração.
No estupro, basicamente, o ato é a penetração (mas pode haver outras ações). Além da penetração, o agente tem de decidir contrariar o desejo da vítima, vale dizer, ele age com violência física (por meio de força ou uso de arma) ou moral (por meio de constrangimento excessivo). Quando a vítima está incapacitada de oferecer resistência, pode haver a chamada vulnerabilidade.
A teoria ainda está em evolução e, diferentemente do que se prega (algumas vezes até na mídia), ela ajuda – e muito – tanto na configuração do delito, quanto na possibilidade de se condenar criminosos. Mas, atualmente, tudo que é midiático chama mais a atenção, assim, tem-se casos de inocentes condenados e criminosos que escapam.
Neste especificamente, o descaso com a teoria foi a fonte da indignação e da ridicularização da tese do promotor e da sentença absolutória.
O absurdo maior foi a consagração da expressão ‘estupro culposo’, que já virou mote nas redes sociais. A imbecilidade e a burrice no campo jurídico acabaram por auxiliar a divulgar uma barbaridade contra a jovem, que foi vítima da violência mais degradante, porque, além do estupro, foi vítima do constrangimento na investigação dos fatos.
Não fosse a jovem divulgar seu drama nas redes sociais, os fatos ficariam esquecidos e tudo estaria como sempre foi.
Porém, há um detalhe grave que se deseja destacar: o caso tem um precedente recente. Neste, a também jovem vítima não soube utilizar-se das redes sociais o suficiente para se defender. Ademais, não era um empresário apenas rico envolvido, era uma celebridade, muito requisitada e de alta consideração em vários meios, principalmente o esportivo. Fala-se aqui do caso Neymar X Najila Trindade, ocorrido em 2019, em Paris, quando a jovem, a convite do jogador foi ‘visitada’ no quarto em que estava hospedada, pago pelo mesmo jogador. Aqui também o estupro foi ‘culposo’, mas ninguém deu ouvidos. Não interessava. Tivesse havido interesse na correta investigação e, talvez, se tivesse evitado o caso Mariana Ferrer.
O que se espera é que a campanha das redes sociais permita evitar que outras mulheres sejam vítimas do mesmo tipo de crime, deste odioso e, hoje, conhecido como ‘estupro culposo’.
Sobre o autor
João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, mestre em Direito e pós-graduado em Filosofia e Teoria Psicanalítica, foi delegado de Polícia e presidente da Comissão de Acompanhamento de Inquéritos da OAB-SP, e é membro da Associação dos Advogados.
Matéria: Gabriela Romão/ ASCOM