SAGRADOS ENCANTOS DE CACHOEIRA
O Recôncavo, Procissão
A imagem vai seguindo
Entre casarões dourado-desbotados
E os milagres
(Pecados?)
Vão ficando no caminho
Como num quadro de Rony Bonn
Carine Araújo
Imponente e bucólica Cachoeira (1)…heroica pela participação nas lutas da independência, histórica pelo patrimônio, praças, igrejas, casario barroco e fachadas coloridas desembocando no mágico Rio Paraguaçu.
Um de seus encantos é a mágica e majestosa Ponte D. Pedro II, ponto de união com a vizinha São Felix. Cortando o Rio, com suas colunas de ferro vazadas e dispostas em X; seus dormentes soltos onde repousam os trilhos, tremem e vibram ao menor sinal de veículo e com a passagem imponente dos trens.
Talvez para assombrar forasteiros desprevenidos, quem o sabe?
E como renda fina estirada parece abrigar o sobrenatural, inspira o amor.
No entardecer dourado, o caudaloso e largo Rio, nos encanta enchendo olhos, corações, aquietando a alma.
Imagens de casas encravadas com luzes coloridas e reluzentes aos pés do imponente Mirante, surgem no seu leito espelho d’água. Torres de igreja e casas à margem lembram cenário de postal, onde a vida passa devagar, tão malemolente quanto o sotaque baiano. Todo agosto, Cachoeira floresce para celebrar a Nossa Senhora da Boa Morte, manifestação que representa a ancestralidade dos povos africanos e libertos do Recôncavo.
Em rituais ancestrais, surge a Irmandade da Boa Morte, ‘primeira organização feminista negra’, que em dialogo multi religioso, organização, luta e resistência, preserva os valores e tradições africanas. Outrora, o movimento surgiu das mobilizações das Guerreiras Irmãs, que se aproximaram da Igreja, construindo uma identidade afro católica e fundando uma Irmandade com o empenho de alforriar negros escravizados e fugidios.
Para preservar sua identidade e fugir de árduos castigos e punições impostos pela Igreja; irmãs, mães e esposas dos escravos fugidos, rogavam a intercessão de Nossa Senhora da Boa Morte, pelo fim da escravidão e sofrimentos.
Espírito de luta também exercido por Maria Quitéria, brava Guerreira, (5) que como’soldado’ Medeiros’ envergando vestes masculinas, lutou bravamente junto com os voluntários do príncipe d. Pedro, ganhando a insígnia de Cavaleiro Imperial da Ordem do Cruzeiro.
Permeadas de fé e celebrando a ‘boa vida’, as celebrações litúrgicas e sincréticas da Nossa Sra. da Boa Morte duram três dias em datas móveis.
No primeiro dia, a celebração inicia com procissão levando o corpo de Nossa Senhora da Boa Morte pelas ruas da cidade após liturgia na Capela, enaltecendo a luta e resistência da mulher na busca da força interior e fé, para uma ‘boa vida’ e ‘boa morte. Na missa pelas irmãs falecidas entre cantos e orações, (…’nos céus com a minha mãe estarei…”) é salientado o desapego, ‘devemos dar ‘boa morte’, ao que não mais nos pertence e ao que nos oprime.
No segundo dia, “dormição” de Nossa Senhora.” Na missa de corpo presente, a prece ecoa na alma…. ‘É teu também nosso coração. Aceita, Senhor a nossa oferta, que será depois, na certa, o teu próprio ser’.
Ao final do mantra sagrado, em passos silenciosos como prece, a multidão percorre ruas da cidade guiadas a luz das velas carregadas pelo séquito da Irmandade.
Encerrando as celebrações sagradas, no terceiro dia, dedicado à Assunção de Nossa Senhora de Glória, após a alvorada, a igreja Matriz fica em festa.
Inundada pela egrégora de luz, esperança, gratidão e ‘fé no que virá’; a multidão após a missa percorre as ruas da cidade louvando Nossa Senhora, sob o rufar da centenária e garbosa Filarmônica Minervina Cachoeirana.
Quiçá na passagem, o mimo de um leve toque no andor da Santa, captando com a fé e mãos bênçãos para o porvir…
Á frente seguem as Irmãs Guardiãs do caminhar (2)’ onde cada esquina recorda e abriga silenciosa, lutas, memórias embaladas pelo vento, em cantos torsos de oitizeiros do Faquir.’
E ao final do dia, as Irmãs com “roupa de baiana” (3) celebram com alegria Nossa Senhora, abrindo o samba de roda no alto da Capela da Ajuda; tal qual os versos da poetisa santamarense Mabel Veloso…(4)” dançando e cantando como aos vinte anos e….não nos deixando lembrar que fizeram oitenta”.
São pueris os Sagrados encantos de Cachoeira… nos deixam em perene Estado de Graça.
E entre tantos outros encantos…ouso ‘dicar’: contemplar o Mestre Rio Paraguaçu ao som do silêncio interno, abstraindo no sábio vai e vem das águas – nos aproxima da humildade pura e simplesmente…e nos faz refletir sobre a fé.
Peregrinar sutilmente com passos leves como prece, que se tornam humildes em árduas ladeiras e caminhos quase sempre tortuosos – nos preenche com a concretude do pertencimento.
E, ao entoar coletivamente os cânticos – linguagem de fé e esperança; lá vai o espírito aos céus, intensidade da gratidão pela Encantada Egrégora – eis os Sagrados Encantos de Cachoeira! Voltarei, na fé!
Sobre a autora:
LENNY BLUE DE OLIVEIRA
Advogada, Jornalista, Ativista Feminista, Colunista Mensal do “Jornal Centro Em Foco-SP’ e do jornal digital “Flor de Dendê’; membro do Grupo Bem-Estar e da Felicidade, Professora de Tai Chi Pai Lin – UBS- República-SP.
1 – Cachoeira proclamou D. Pedro como regente do Brasil, um marco na libertação do jugo português. O povo combatente e negro de Cachoeira rechaçou às pretensões portuguesas em submeter o povo baiano, e impôs derrota à barca lusitana, proclamando D. Pedro como Príncipe Regente, dois meses antes do grito de Ipiranga, momento embrião na libertação do jugo português.
2 – Oitizeiros do Faquir. Menção as lendárias arvores da Praça do Faquir, próxima à orla de Cachoeira. Edmar Ferreira, Poeta e escritor o poema Segredos de Agosto (para a Irmandade)
3 – Bata branca, saia colorida, turbante e pano da costa.
4 – Veloso, Mabel – Pedras de Seixo, 1980, p.136.
5 – Maria Quitéria, juntamente com Sóror Joana Angélica de Jesus, João Francisco de Oliveira (João das Botas) e Maria Felipa de Oliveira tiveram seus nomes incluídos no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, reconhecendo-os como Heroínas e Herói da Independência da Bahia.
Matéria: Lenny Blue de Oliveira | Revisão: Tribuna do Recôncavo