Era início da noite, quando o Movimento Passe Livre (MPL) queimou uma catraca de papelão, interrompendo o tráfego na Avenida 23 de Maio, na altura do Vale do Anhangabaú, centro da cidade de São Paulo. Naquele 6 de junho de 2013, os manifestantes lutavam contra o aumento das tarifas do transporte público, que haviam subido de R$ 3 para R$ 3,20 no início do mês. Atos semelhantes haviam acontecido nos anos anteriores pelo mesmo motivo. Da mesma maneira, a polícia reprimiu o protesto como tinha feito de outras vezes. Porém, em menos de duas semanas, o Brasil todo perceberia que aquilo tinha sido o começo de uma mobilização muito maior.
No dia 17 de junho, as ruas da capital paulista seriam tomadas por dezenas de milhares de pessoas, paralisando o trânsito em parte das avenidas mais importantes da cidade. Naquela noite, os protestos já haviam chegado a outras cidades, como Belo Horizonte e o Rio de Janeiro.
Em Brasília, os manifestantes ocuparam a marquise do Congresso Nacional. No dia 20, os participantes dos atos chegariam a depredar o prédio do Palácio Itamaraty.
Ações do tipo seriam vistas durante toda a onda de protestos, desde o primeiro dia, quando, após ser reprimida no centro paulistano, a multidão foi em direção à Avenida Paulista, onde quebrou vidraças de agências bancárias. A adesão de parte dos manifestantes à chamada tática black block, em que, com o rosto coberto, participantes dos protestos promoviam a depredações, barricadas e respondiam às bombas da polícia com rojões e pedras, também foi um elemento novo da onda de atos.
A repressão policial, com centenas de prisões, e manifestantes feridos, alguns com sequelas permanentes, pelo uso da munição menos letal foi outra marca do momento. A reação da sociedade a essa violência foi determinante para aumentar a adesão aos protestos.
Mas, dez anos depois, pesquisadores e ativistas ainda têm dificuldades em determinar porque os atos de rua daquele ano evoluíram daquela forma. Parece ser consenso, entretanto, que junho de 2013 é um marco na história política brasileira e que a interpretação do momento segue em disputa.
Uma das questões difíceis de responder, mesmo em perspectiva, é por que os atos contra o aumento das passagens cresceram e se tornaram grandes manifestações com diversas pautas ligadas às condições de vida da população – saúde, educação, habitação e transportes.
“Você já tinha uma disputa aberta pelos territórios. Por exemplo, a retomada indígena é em 2013 [série de ocupações de terras por indígenas em Mato Grosso do Sul]. No Rio de Janeiro você já tinha uma intensificação das mobilizações, primeiro, por causa das pessoas desalojadas para a construção da Cidade Olímpica. Já tinha uma disputa pela terra urbana. O movimento indígena do que se chama de campo, o não urbano”, relaciona o professor do curso de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Acácio Augusto, ao lembrar que já havia um contexto de mobilizações naquele momento.
Além disso, ele destaca o “crescimento gigantesco das greves no ano anterior”. Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, em 2011, foram realizadas no Brasil, 554 greves. Em 2012, foram 877 movimentos de paralisação, e, em 2013, 2.050.
O cenário de insatisfação popular foi alimentado, na avaliação do pesquisador, pela forte repressão policial aos atos.
“Isso destravou uma série de demandas, entre elas, a própria questão do transporte. Cabe-se dizer, não se resumia à questão do transporte propriamente dito, dizia respeito à circulação na cidade, a possibilidade de acesso que as pessoas tinham à cidade. Foi isso que fez também a pauta escalar tão rápido, essa combinação com disputas territoriais que já estavam acontecendo e a combinação com a violência policial”, analisa.
Essas demandas estavam relacionadas a uma “degradação geral das condições de vida nas grandes cidades”, de acordo com o professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Erick Omena. Ao analisar diversos dados, ele aponta que em 2013 as populações dos centros urbanos enfrentavam uma acentuada piora das condições de mobilidade, acesso à saúde e habitação, associada a um crescente descrédito na política institucional.
A partir de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Omena mostra que, entre 2004 e 2012, há um aumento na proporção de trabalhadores que levam mais de uma hora no percurso entre a residência e o emprego. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, o percentual sobe de 18% para 24,7% no período, e, na Grande São Paulo, de 20% para 23,5%.
O preço dos aluguéis, entre janeiro de 2008 e junho de 2013, subiu, segundo o pesquisador, 131%, no Rio de Janeiro, e 88%, em São Paulo.
“Na medida em que você aumenta o preço da habitação, você vai forçar as pessoas a irem para as regiões mais periféricas, que são mais distantes dos centros, que [é] onde estão a maior parte dos empregos. Portanto, o deslocamento casa-trabalho também vai aumentar”, explica o pesquisador sobre como a soma dos fatores afeta a vida da população.
Há ainda indicativos, segundo Omena, de uma crescente insatisfação com o sistema público de saúde. “Mais ou menos nesse período, você tem uma adesão bastante expressiva e relativamente rápida de um grande número de pessoas à assistência médica privada”, acrescenta.
Esse cenário de “precariedade da vida” contrastava, na avaliação da professora de história contemporânea da Fundação Cásper Líbero Joana Salém, com os preparativos do Brasil para receber os grandes eventos esportivos. “Se tinha uma percepção que se estava gastando muito dinheiro com aquelas obras em vez de gastar com saúde e educação para o povo”, diz em referência aos estádios e outros investimentos feitos para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
Os avanços em algumas áreas também ajudaram a impulsionar, segundo a professora, parte da população a buscar mais direitos. “Um marco de dez anos de governos do PT, que tinham ampliado determinados direitos, sobretudo para essa juventude trabalhadora, como, por exemplo, o direito à universidade. E parte dessas pessoas que entra na universidade, existe uma expectativa, uma certa pressa de que aqueles direitos se concretizem mais rapidamente”, acrescenta.
O MPL de São Paulo tinha como inspiração jornadas de luta contra o aumento das tarifas de transporte em outros lugares do país, como a chamada Revolta do Buzu, ocorrida em Salvador, em 2005. “Em 2011 teve uma luta muito grande contra o aumento em São Paulo, que durou dois, três meses, toda a quinta-feira tinha atos. E foi bem intenso para a época”, contextualiza Frederico Ravioli, que em 2013 fazia parte do Passe Livre.
Houve ainda, na opinião do militante que deixou o movimento em 2016, influência do cenário internacional. “[O ano de] 2013 captura também um pouco dessas ondas de protestos que estão acontecendo no mundo inteiro, em 2008, no Chile; na Primavera Árabe, no Oriente Médio; no Norte da África. Talvez seja um pouco do momento que essa ideia do consenso – de que a gente vai avançar devagar para todo mundo crescer – vai por água abaixo”, diz.
Uma semelhança entre as revoltas que atingiram, entre 2010 e 2012, diversos países, como o Egito, a Líbia, a Síria, o Iêmen, o Barein e o Marrocos, e as jornadas de junho foi o papel da internet e das redes sociais. “Toda essa insatisfação crescente vai achar um veículo excepcionalmente novo e muito mais capilarizado de expressão, que é a internet”, enfatiza Erick Omena. O pesquisador destaca que, de 2003 a 2013, o acesso à rede se expandiu de 13% da população para 51%.
“Junho de 2013 não poderia ter acontecido sem esse rápido acesso da população a esse novo meio de comunicação, em especial as redes sociais”, acredita.
A mobilização de dezenas de milhares de pessoas nas ruas começou a ser disputada por grupos de direita e extrema direita antes mesmo de junho acabar, diz Acácio Augusto. “Reagindo a essa radicalização que junho traz, você vai ter não só uma intensificação da atuação institucional das forças de segurança, como também uma tentativa de disputar isso por forças mais à direita – de liberais a neomonarquistas”, pontua.
“Tem o Vem pra Rua, tem o MBL [Movimento Brasil Livre], que rouba a nossa sigla”, cita Frederico Ravioli sobre os movimentos de direita que se inspiram diretamente no sucesso das mobilizações do MPL. “É interessante para pensar como a direita se apropriou das táticas de esquerda, da forma de organização da esquerda radical, enquanto a esquerda tradicional ficou defendendo a democracia, a ordem e a estabilidade”, reflete o ex-militante.
Para ele, esses movimentos entenderam “as potencialidades de junho” e partiram para uma luta “disruptiva”.
O descontentamento foi canalizado por esses grupos, na avaliação de Joana Salém, em insatisfação com os governos do PT, partido que estava há dez anos à frente do governo federal e, na ocasião, recém-eleito para a prefeitura de São Paulo. “Muitas pessoas não se identificavam como direita e passaram a se identificar a partir de 2014, 2015, com uma ocupação das ruas pelo impeachment da [então presidente] Dilma Rousseff”, diz ela sobre a aproximação com a parcela da população que não tinha convicções políticas bem definidas.
“A direita soube aproveitar essa subjetividade política difusa para fazer uma campanha muito bem-sucedida de ganhar espaço contra o petismo. Até o limite do ódio que se chegou nos anos Bolsonaro [Jair Bolsonaro foi presidente, de 2018 a 2022]”, acrescenta Joana.
Ao mesmo tempo, as jornadas de junho foram inspiração para diversos movimentos de lutas por direitos nos anos seguintes. “Se você pensar nas características dos jovens que se juntaram na ocupação das escolas, você não estava só na questão da escola, a questão de gênero estava colocada, modos de vida, modos de educar, de aprender. Essa dimensão, que é bem difícil de captar do ponto de vista objetivo, era muito marcante em junho”, relaciona Augusto sobre o movimento dos estudantes secundaristas contra a reforma escolar no estado de São Paulo, em 2015 e 2016.
Para o pesquisador, os protestos contra a tarifa marcaram ainda a “retomada da rua como espaço de sociabilidade”. Como exemplo, ele cita outras mobilizações ocorridas nos anos seguintes na capital paulista. “A mobilização que tentava impedir a construção de mais um condomínio ali no centro, e acabou criando o que hoje se chama de Parque Augusta, tem a ver com junho também. Isso não tem a ver especificamente com a criação de um parque ou não, mas com a questão ecológica, de como se vive na cidade, como se vive no centro”, ressalta. “A mobilização de vários coletivos em torno dos abusos que são cometidos pelas forças na repressão à Cracolândia, na Favela do Moinho, tudo isso está conectado a junho de 2013”, acrescenta.
Editado pelo Tribuna do Recôncavo | Fonte: Agência Brasil.